Mercado hostil, masculinizado e focado em sexualização: mulheres relatam dificuldades para produzir funk em SP


g1 conversou com produtoras e uma MC que enfrentam dificuldades para lançar músicas sem letras sexualmente explícitas e conseguir espaço para produzir funk de baile em SP. Dj Dayeh e Bibi Drak em estúdio.
Fábio Tito/ g1
O funk brasileiro já evoluiu e encontrou espaço na música mundial, mas ainda é um lugar dominado por homens, principalmente na parte de produção. Para mulheres que trabalham com o ritmo, ainda existe um mercado hostil, com foco na sexualização.
“Muitas MCs trilharam caminhos no funk para a gente estar aqui agora, não é de hoje que tem mulher no funk – sempre teve. A diferença é o acesso e as condições que ela tem para cantar. Se o cara te chama para cantar, e ele não vai te comer, muitas vezes ele não vai te chamar de novo nem sequer lançar a música”, afirma a produtora e socióloga Maria Gabriela de Toledo Dayeh, a Dj Dayeh.
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O g1 conversou com duas produtoras, Dj Dayeh e Dj Lorrany, e com a Mc Bibi Drak sobre as dificuldades de conseguir produzir música em São Paulo.
Recentemente, produções dos bailes da capital foram compiladas em um álbum pela rádio britânica NTS e, esse disco (funk​.​BR – São Paulo) foi avaliado pela Pitchfork, uma das revistas de músicas mais influentes do mundo, que chamou o funk paulista de “montanha-russa de maximalismo club” de “criatividade infinita”.
O disco teve uma avaliação melhor do que o recém “The Tortured Poets Department”, da segunda artista mais ouvida no mundo pelo Spotify, Taylor Swift. Dayeh está no disco da NTS com a música “As Mais Top”, produzida por ela com a Mc Bibi Drak. A Dj Lorrany entrou com “Mandela Cunt”.
Bianca Mercês d’ Conte, de 22 anos, a Bibi Drak, contou ao g1 que a letra da música “As Mais Top” estava escrita há anos, mas nenhum produtor topava gravar por ser uma letra “limpa”, sem palavrões, gemidos ou uma descrição de relação sexual.
Bibi Drak conta que ainda leva o funk como hobbie, já que não dá para se manter só com a grana da música.
Fábio Tito/ g1
Bibi cresceu próximo à favela da Alba, na Zona Sul de São Paulo. Com 14 anos, já frequentava bailes, principalmente o da D17, em Paraisópolis, mesmo sem a permissão dos pais. “Era a música que me atraía, porque música de baile só toca em baile, não tem jeito. Aquele tipo de música você só escuta dentro da favela, e isso me atraía.”
“Acho que quando você é MC, tem cara que já te chama para o estúdio com segundas intenções. E, como são frustrados, depois nem te chamam mais. Pior de tudo é quando você não faz o que ele está esperando e a sua música nem é lançada. Isso já me aconteceu milhares de vezes. Então sempre foi bem difícil de lidar e conviver com isso porque fui lá para trabalhar, dediquei meu tempo, dinheiro, porque a gente não aparece lá do nada. É todo um investimento perdido”, afirma.
Bibi virou MC durante a pandemia, mas não vive só de música. Ela fez uma playlist de funk mandelão no Youtube e, com o grande número de visualizações, a jovem foi convidada por um produtor para cantar uma música e aceitou o convite. Desde então, está no mundo do funk, mas ainda assim mantém um emprego fixo para se sustentar.
“Acho que mesmo com as dificuldades de conseguir colocar a música na rua, eu sempre gostei do funk, do baile. O sonho da minha vida era só ver uma música minha tocando em um paredão. Isso já aconteceu, então eu estou realizada. Não é sobre dinheiro. Ainda não faço muito show, fico mais acompanhando minha DJ, mas é algo que eu amo”, afirma.
Ambiente masculinizado
Dj Dayeh começou tocando hip hop em festas, mas migrou para o funk depois da pandemia.
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A Dj Dayeh, de 26 anos, começou no funk em 2019. Antes da pandemia, ela tocava hip hop em festas e eventos, por ser uma “cena que tinha mais contato”.
“Quando eu estava no segundo ano da faculdade, fui atrás de fazer curso para aprender a tocar em vinil, por hobbie mesmo, porque achava incrível, algo bem cultural do hip hop. No geral, sempre gostei muito de música, mas não canto, não sei tocar instrumento. Então meu caminho foi virar DJ. Comecei tocando em eventos de rap dos meus amigos, de graça mesmo. Mas a minha vontade sempre foi produzir funk”, afirma.
Trancada em casa, durante a pandemia, Dayeh passou a maior parte do seu tempo ouvindo música e estudando os ritmos que estavam explodindo na internet. Assim, ela conheceu a bruxaria, que nasceu nos bailes funk da Zona Sul de São Paulo.
“Quando as coisas foram reabrindo e eu voltei a tocar, já na bruxaria – que acompanhei o movimento nascendo, os DJs surgindo. Então, quando terminou a pandemia, esses DJs já estavam bombando. Saí da pandemia doida para tocar bruxaria, mas quando fui para as festas, as pessoas estranhavam porque era um movimento da favela. Então os meus contratantes começaram a estranhar e deixaram de me convidar para tocar”, completa.
Moeda de troca
Aos poucos, Dayeh foi recebendo novos convites para voltar a tocar em festas, em meados de 2022. Ela também toca em bailes, na Marcone e no Helipa, mas são pouquíssimas mulheres com espaço nos eventos.
Interessada pelo funk e pela produção, Dayeh começou a usar as festas que tocava como moeda de troca para ter aulas de produção com djs de funk. “Foi a minha forma de negociar, eles me ajudavam a produzir, me levavam nos estúdios e em troca, eu colocava alguma música deles no meu set em festas”.
“Eu só notei como o estúdio é um local completamente masculinizado, quando comecei a frequentar. É completamente dominado pelos caras. No começo era difícil, tinha o rolê de ser a única mina no local, porque eu precisava que eles me ensinassem a produzir e me dessem espaço”, afirma.
Mais fácil tocar em festas LGBTQ+
Dj Lorrany
Fábio Tito/ g1
Lorrany Caroline Ferreira Dos Santos, a DJ Lorrany, de 26 anos, entrou pela primeira vez em um estúdio com Dayeh. “Esse mundo da produção musical é muito fechado, está expandindo agora. Era rara essa oportunidade de colar em um estúdio.”
Ela conta que sempre toca em festas mais focadas no público LGBTQ+, onde tem mais abertura e recebe mais convites para se apresentar. Lorrany só tocou em baile uma única vez, no Bega, na Zona Sul.
“Para você se inserir no mercado já é mais difícil sendo mulher, da periferia… quando é LGBTQ+ então, é ainda mais complicado. Uma vez fui tocar na Zona Norte e o cara do som perguntou se eu poderia recomeçar porque ele não estava acreditando que eu conseguia tocar”, afirma.
O problema é cantar proibidões?
As meninas são categóricas em dizer que não, para elas, o problema é ser forçada a cantar esse tipo de música.
O proibidão é uma música mais difícil de tocar em rádio e programas de TV e fica com restrição de compartilhamento. Por conta disso, diminui a visibilidade fora de bailes e festas. Este é um dos motivos que faz com que as produtoras invistam em músicas com a letra mais “limpa”.
“Acho que o problema é que não é todo produtor que vai ter por trás uma gerência com uma maturidade para entender que o que você está fazendo é profissional, não é para agradar alguém que está ali. Quando a gente canta uma ‘putaria’ é um eu-lírico. Você não está falando de você ou de algo que você viveu, é algo artístico. As pessoas nunca tiveram maturidade para lidar com isso, quando você é uma mulher. Porque os homens sempre estiveram no topo, controlando essa indústria”, afirma Bibi.
“A música está aí, principalmente a bruxaria, que já é uma coisa tão livre, tão experimental, que a gente testa tantas coisas. Não é sobre não cantar, é sobre não ser obrigada a cantar”, completa.
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