Baleeira: embarcação se tornou uma espécie de ponte entre a Ilha e os Açores

A caça à baleia é proibida no Brasil, mas a atividade – uma das mais importantes fontes de renda que as comunidades litorâneas já tiveram – deixou pelo menos uma herança que pode ser encontrada, fisicamente, perto dos ranchos de pesca que se espalham pela orla. Considerada um produto da genialidade dos construtores, a baleeira é uma embarcação nobre, de concepção sofisticada, cuja agilidade e segurança conquistaram a reverência e a admiração dos homens do mar.

Baleeira vermelha, branca e azul na praia

Considerada um produto da genialidade dos construtores, a baleeira é uma embarcação nobre, de concepção sofisticada, cuja agilidade e segurança conquistaram a reverência e a admiração dos homens do mar – Foto: Germano Rorato/ND

Ainda que não encontre novos artífices que as fabriquem e as ofereçam aos pescadores, a baleeira é presença certa nas comunidades à beira-mar, passando por reparos e voltando sempre ao uso, para alegria dos profissionais do ramo. E é também objeto do carinho de artistas, como o fotógrafo florianopolitano Joel Pacheco, que tem livros publicados e vai abrir uma exposição sobre o tema na primeira semana de agosto, na cidade de Horta, na ilha açoriana do Faial.

Como em trabalhos anteriores, Pacheco faz na mostra um paralelo entre os Açores e a Ilha de Santa Catarina, que recebeu centenas de famílias do arquipélago a partir de 1748. Essa aproximação fez com que no título de uma de suas obras chamasse Florianópolis de “a décima ilha dos Açores”. Além do sempre recorrente tema da pesca, ele mostra similaridades nas festas religiosas, na cultura e em manifestações artísticas e folclóricas. Mas é nas baleeiras que concentra maior atenção.

“Há muitas semelhanças entre as embarcações de lá e daqui, incluindo o formato e o tamanho da popa e da proa”, analisa o fotógrafo. “A diferença é que no arquipélago as baleeiras são um bem tombado pelo governo regional e recebem incentivos, enquanto aqui parecem abandonadas, jogadas num canto. Nas ilhas de lá, as baleeiras também são usadas com fins turísticos, na observação de baleias, e em magníficas regatas festivas, ainda movidas a remo e vela. É um verdadeiro balé aquático”, conta.

Em meados do século 18, quando chegaram ao litoral catarinense, os açorianos eram mais agricultores que pescadores, mas encontraram aqui as águas calmas das baías e enseadas e o conhecimento em navegação e pesca dos indígenas. Mais tarde, a caça ao cachalote virou um grande negócio no hemisfério Norte, com a presença forte de empresas norte-americanas, cuja tecnologia na pesca e no beneficiamento dos animais empurrou muitos açorianos para a atividade.

Baleeira é presença certa nas comunidades à beira-mar, passando por reparos e voltando sempre ao uso – Foto: Germano Rorato/ND

Em Santa Catarina, as baleias eram mortas em locais que ganharam um nome em comum: na Armação do Pântano do Sul, Armação de Piedade (município de Governador Celso Ramos), Garopaba e Armação de Itapocorói (município de Penha).

Ofício passado de uma geração para outra

A exposição “A Baleeira da Ilha de Santa Catarina” reúne 25 imagens coloridas em tamanho 50 cm x 70 cm, impressas em papel fotográfico, e será aberta no dia 4 de agosto, no Museu da Antiga Fábrica da Baleia, em Porto Pim, na Horta, ilha do Faial, nos Açores. Serão expostos ainda uma miniatura da baleeira brasileira e o livro “A Canoa Baleeira dos Açores e da Ilha de Santa Catarina”.

Joel Pacheco vai exibir na mostra uma reportagem de TV produzida pelo Grupo ND que fala da caça à baleia na Ilha de Santa Catarina – Foto: Germano Rorato/ND

Joel Pacheco também vai exibir na mostra uma reportagem de TV produzida pelo Grupo ND que fala da caça à baleia na Ilha de Santa Catarina, dos construtores e reparadores dessas embarcações e da pesca no litoral do Estado. Ainda este ano, a intenção é que a exposição seja montada em Florianópolis para homenagear o manezinho Alécio Heidenreich (1929-2022), tradicional construtor do Ribeirão da Ilha, que fabricou cerca de 80 baleeiras durante a vida.

Depois de estudar, pesquisar e entrevistar construtores e pescadores, Pacheco passou a entender as características das baleeiras e as peculiaridades que têm, dependendo do lugar onde eram produzidas. “No Sul do Brasil, essas embarcações são parecidas com as americanas e foi com elas que os açorianos, que sempre estiveram na rota das navegações, aprenderam a matar baleias”, diz o fotógrafo. Uma diferença é que nos mares do Norte caçava-se o cachalote e no Atlântico Sul, a baleia-franca era a mais comum.

Aqui, as baleeiras têm o casco trincado. Nos Açores, usa-se o casco liso, que gera menos ruídos nas operações no mar. No arquipélago, a construção parte de gráficos estabelecidos e de matrículas de embarcações já existentes, enquanto os construtores catarinenses utilizam a experiência passada de uma geração para outra, a sabedoria transmitida de pai para filho ou sobrinho de uma mesma família. Na Grande Florianópolis, Eduardo Rocha, morador de Biguaçu, é um dos construtores remanescentes, embora atualmente se dedique mais à reparação do que à fabricação de baleeiras.

O risco provocado pela falta de novos construtores de baleeiras

Arquiteto de formação, Joel Pacheco sempre teve paixão pelo mar, até porque nasceu e passou parte da infância ao lado do Forte Santana, próximo à cabeceira insular da ponte Hercílio Luz. Ali, construía barquinhos com restos de madeira, cacos de louça, cerâmica ou conchas encontradas na areia. Descendente de açorianos, já adulto fez um curso sobre as raízes da cultura local e se interessou pela saga dos imigrantes, a ponto de ter ido aos Açores oito vezes e publicar três livros sobre os pontos em comum que ainda aproximam os dois lados do Atlântico.

A atração pelo tema da canoa baleeira – ou bote baleeiro, como a embarcação é conhecida nos Açores – tem relação com sua importância para a pesca artesanal e o transporte de passageiros em lagoas e baías, especialmente depois da introdução do motor a gasolina ou diesel.

“As baleeiras são barcos notáveis, herdeiros distantes de tradições dos nórdicos europeus, chegadas pelos insuspeitos caminhos da Inglaterra, da América do Norte, dos Açores e daí ao litoral de Santa Catarina”, diz o arquiteto Dalmo Vieira Filho no prefácio do livro “A Canoa Baleeiras dos Açores e da Ilha de Santa Catarina” (2009), de Pacheco.

Apesar da ótima navegabilidade, esse produto do engenho e arte dos construtores pode desaparecer, por falta de novos artífices e pelas dificuldades de transmissão das técnicas construtivas. Nos Açores, a tradição é preservada em espaços como o Museu do Baleeiro, na ilha do Pico. Aqui, uma baleeira não concluída foi adquirida pelo navegador Amyr Klink e está exposta no Museu Nacional do Mar, em São Francisco do Sul.

O pescador que voltou ao mar para continuar vivendo

O bairro João Paulo, em Florianópolis, abriga uma comunidade pesqueira que resiste à explosão imobiliária e garante a subsistência de muitas famílias de pescadores. Ali, é possível ver várias baleeiras esperando a hora de entrar na água da baía Norte, e pescadores consertando redes e reparando embarcações.

Um desses obstinados profissionais é Hélio Falcão, o Pagé, 68 anos, sendo 54 dedicados à pesca. Enquanto retoca a tinta da baleeira Avaiana Ferreira, ele conta que seu pai era um misto de pescador e padeiro e que, nascido ali mesmo, nunca pensou em seguir outra carreira que não fosse a lida no mar.

Hélio Falcão tem 68 anos, sendo 54 dedicados à pesca – Foto: Hélio

“Quando me aposentei, fiquei cinco meses longe das pescarias, e não aguentei”, afirma. Por isso, mesmo com safenas no peito e problemas de saúde, continua firme. Lamenta que não se fabriquem mais baleeiras e que as novas gerações descartem a pesca como profissão.

Para o pescador, a baleeira é mais estável e segura que outras embarcações, além de exibir “boniteza”, o que também é importante. Em tantos anos na lida, Pagé nunca passou sustos no mar, mas não se arrisca, porque não aprendeu a nadar. “Não se pode fazer aventura, e no mais é andar com Deus e Nossa Senhora”, ensina. Diz que vai morrer nessa lida, “porque a pesca é uma grande terapia”.

Um mestre que deixou saudades no Ribeirão da Ilha

Um dos últimos construtores de baleeiras de Florianópolis foi Alécio Heidenreich, que deixou embarcações que ainda singram a costa catarinense e relatos escritos sobre membros de gerações anteriores de sua família que participaram da matança de baleias no Matadeiro e Armação do Pântano do Sul.

A importância desse nativo que viveu 93 anos pode ser medida pela homenagem que lhe foi prestada quando a Câmara de Vereadores da Capital, em projeto do vereador Afrânio Boppré, criou o Dia Municipal da Baleeira em 18 de dezembro, a data de nascimento de Heidenreich. O principal insumo da baleia era a gordura, que permitia a produção de óleo para a iluminação pública e a construção de casas.

Último membro de uma ampla linhagem de construtores que, segundo ele próprio, fabricou mais de 1.000 baleeiras, Alécio também marcou a comunidade do Ribeirão por ter liderado a Banda Nossa Senhora da Lapa, criada no final do século 19 e que ainda hoje se apresenta ali e em outros bairros de Florianópolis. Desde a década de 1950, ele manteve o grupo ativo, abrindo oportunidade para músicos da cidade e formando novos instrumentistas no Ribeirão. Seja pela banda, seja pelas baleeiras, o legado de Heidenreich continua vivo e é reverenciado por diferentes gerações.

 

Adicionar aos favoritos o Link permanente.