Ostomia é deficiência por lei, mas a sociedade ainda não entendeu: ‘já fui desrespeitada’

Ter uma ostomia não nos impede de nada. A gente ama, trabalha, estuda, tem hobbies, viaja, sonha… Só precisamos de respeito, mais acessibilidade e informação“, destaca Lorena Eltz, de 25 anos, em entrevista à Catraca Livre. A influenciadora digital e estudante de biomedicina foi diagnosticada com a doença de Crohn aos cinco anos e é ostomizada desde os 12.

Como ela, milhares de brasileiros convivem com doenças inflamatórias intestinais (DIIs) e enfrentam desafios cotidianos que vão além da dor ou dos sintomas físicos.

Entre as principais dificuldades, está o acesso a banheiros públicos adaptados e o desconhecimento sobre os direitos legais garantidos a pessoas ostomizadas — que são, por lei, consideradas pessoas com deficiência (PCDs).

Na DII, a ostomia pode ser necessária para desviar o trânsito intestinal, aliviar sintomas e melhorar a qualidade de vida.

O que são DIIs e por que afetam tanto o dia a dia?

As doenças inflamatórias intestinais, como a doença de Crohn e a retocolite ulcerativa, são condições crônicas que afetam o trato gastrointestinal e causam sintomas como diarreia, dores abdominais intensas, sangramentos, fadiga, perda de peso e febre.

Em casos de complicações mais graves, é necessário recorrer à cirurgia para retirada de partes do intestino e à criação de uma ostomia (ou estomia) — uma abertura no abdômen para eliminação das fezes em uma bolsa coletora externa.

Essas doenças, ainda pouco conhecidas, afetam profundamente a rotina e a qualidade de vida de quem convive com elas.

Acordava sempre durante a noite para ir ao banheiro. Chegava a ir no toalete 10-15 vezes ou mais no fim do dia”, lembra a enfermeira Manie de Andrade, de Salvador (BA), diagnosticada com Crohn aos 17 anos.

Manie de Andrade conversa com a Catraca Livre sobre Crohn, ostomia e desafios.

Ostomia e o impacto na vida social

Segundo uma pesquisa recente da Crohn’s & Colitis Foundation, mais de 60% dos pacientes relatam que a doença de Crohn interfere diretamente na vida social e no planejamento das atividades do dia.

Lorena explica que sua primeira ostomia foi aos 12 anos, após anos de internações. No início, o medo foi enorme, mas a cirurgia representou um novo começo.

Foi uma decisão difícil, mas necessária. No começo, eu achei que seria o fim da minha liberdade… e depois percebi que eu finalmente consegui ter mais qualidade de vida.”

Hoje, com uma ileostomia definitiva, ela afirma viver melhor do que nunca. Mas reconhece que o maior desafio não foi físico.

O emocional, especialmente no começo, foi mais pesado. Eu me sentia diferente, insegura, com medo de rejeição. Aos 12 anos, você só quer ser igual às outras crianças”, lembra. “Cresci e passei minha adolescência assim, com muita dificuldade de me encaixar ou me aceitar.”

Lorena Eltz fez ostomia aos 12 anos.

Direitos de pessoas ostomizadas e com DII

Manie também é ostomizada e reconhece que o procedimento deu mais liberdade para sair de casa. Porém, ela desabafa sobre o fato da ostomia ser considerada uma deficiência “invisível”: “Inúmeras vezes que estive usando meus direitos, fui desrespeitada.

São cerca de 100 pessoas afetadas a cada 100 mil brasileiros. Não somos raros. Mesmo assim, as DII não possuem portarias, normativas ou qualquer legislação própria”, lamenta.

De acordo com a legislação brasileira, se a DII levar à necessidade de uma ostomia (como colostomia, ileostomia ou urostomia), o paciente passa a ser legalmente equiparado à pessoa com deficiência, conforme a Lei nº 7.853/89 e o Decreto nº 5.296/2004.

O cordão de fita com desenhos de girassóis virou símbolo nacional para identificar pessoas com deficiências ocultas, que não são visíveis de imediato.

Ou seja, pessoas ostomizadas têm direito à carteirinha de identificação de PCD, prioridade em filas, vagas de estacionamento e, principalmente, ao uso de banheiros acessíveis. A legislação reconhece que cada caso é único, principalmente diante das variações nos sintomas e impactos das DIIs.

Mas na prática, o desconhecimento é frequente — tanto da sociedade quanto dos próprios pacientes. “Pacientes ficam sem tratamento, sem assistência, auxílios são negados, concursos os excluem, governantes não nos conhecem. Nem consideram como PCD, nem vistos como uma pessoa ‘normal’ porque existe um diagnóstico“, relata Manie.

Mais banheiros adaptados, acesso a esses banheiros em locais públicos, compreensão nas escolas e no trabalho” são demandas urgentes, de acordo com Lorena.

Falta estrutura, sobra preconceito

Apesar dos avanços nos direitos legais, a realidade dos ostomizados e de quem convive com DII ainda é marcada por estigmas e falta de informação.

Ainda é um tabu. Muitas pessoas nem sabem o que é, e quando sabem, às vezes têm ideias distorcidas”, afirma Lorena. Esse desconhecimento impacta diretamente a autoestima e a inclusão social das pessoas com ostomia.

Segundo Manie, os julgamentos são frequentes e no ambiente de trabalho não é diferente, mesmo ela atuando na área da saúde: “já fui rotulada como ‘a que faz corpo mole’, ‘que inventa desculpas para fugir do trabalho’. Assim como em relações, relacionamentos – que por sinal nem foram adiante, porque eu acredito que mereço muito mais do que um rótulo e julgamentos.”

Logicamente, com a doença em atividade teremos momentos onde cuidados serão necessários. Mas viver com medo de perder seu emprego por comunicar seu quadro e solicitar alguns dias, não ajuda em nada. Ninguém entrou na fila pra ganhar um diagnóstico“, complementa.

A enfermeira teve complicações da Doença de Crohn.

Para ela, a visibilidade é essencial para combater preconceitos e construir redes de apoio. “A rede social surgiu quando eu encontrei associações de pacientes com DII. Por eu ser enfermeira, muitas pessoas conversavam comigo sobre suas demandas”, explica. “Então o perfil surgiu para ajudar. Uma biblioteca de conhecimento.”

Tanto a enfermeira quanto Lorena destacam como é valioso conhecer outras pessoas que têm o mesmo diagnóstico — e, nesse sentido, a internet se torna essencial. Ambas são criadoras de conteúdos sobre DIIs e ostomia.

A importância de falar sobre o tema

Movimentos como o Maio Roxo, mês de conscientização sobre as doenças inflamatórias intestinais, são fundamentais para ampliar o debate.

Ainda há muita desinformação — tem gente que sofre muito ainda por não saber nem que o que sente pode ser uma doença. Essa visibilidade salva vidas, previne, ajuda a diminuir os diagnósticos tardios e fortalece a nossa rede de apoio”, ressalta Lorena.

Lorena acumula mais de 600 mil seguidores no Instagram.

Além da conscientização, é necessário investimento em infraestrutura acessível, capacitação de profissionais e respeito à individualidade de cada paciente.

Como aponta Manie, “o diagnóstico veio como uma resposta, com certo alívio, por dar um nome. Mas, ao mesmo tempo, medo e interrogações”. Esse medo precisa ser acolhido — e não ampliado pela falta de apoio da sociedade.

Adaptações necessárias

Justamente por todos esses desafios, o cirurgião digestivo Dr. Rodrigo Barbosa, CEO do Instituto Medicina em Foco, enfatiza à Catraca Livre a necessidade de mais políticas públicas, educação e empatia da sociedade.

No ambiente de trabalho e em escolas/universidades, o médico acredita que é possível acolher esses pacientes com medidas simples e de baixo custo. Isso inclui:

  • permitir saídas para o banheiro;
  • oferecer horários mais flexíveis;
  • respeitar atestados, laudos e recomendações médicas;
  • evitar burocracias desnecessárias;
  • promover um ambiente sem julgamentos;
  • em escolas, liberar o aluno durante as aulas sem constrangimento já reduz muito a ansiedade associada à doença.

No fim das contas, a luta por dignidade passa por um olhar mais humano, pela superação de preconceitos e pela garantia de direitos concretos.

O ideal é que a sociedade avance junto com a gente. Não queremos tratamento especial, só inclusão real”, reforça Lorena.

 

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