O Ministério Público Federal (MPF) entende que a investigação sobre o atabalhoado resgate de 3,5 mil armas da empresa Taurus no Aeroporto Internacional Salgado Filho, em Porto Alegre, durante as enchentes de maio do ano passado, deve ir para o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS). O polêmico caso foi revelado pela reportagem do Grupo Sinos.
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Foto: Reprodução
O procedimento apura possível coação de uma funcionária da indústria bélica e de um amigo dela contra seis voluntários para que atuassem na linha de frente da arriscada operação, sem nenhum preparo técnico e equipamentos de segurança, como coletes balísticos. As vítimas afirmam que foram chamadas para salvar crianças e acabaram intimidadas a participar da remoção de armas no aeroporto alagado.
O MPF, que abriu o inquérito em junho do ano passado, concluiu ser competência do MPRS a apuração. O parecer aguarda a homologação da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, em Brasília. A assessoria do órgão não se manifestou sobre quando sai a decisão.
Arquivado
A Procuradoria da República instaurou outro procedimento para apurar a conduta da Polícia Federal ao permitir a participação dos voluntários na operação. Foi arquivado sem responsabilizar nenhum agente ou delegado. Os fundamentos do entendimento, conforme o MPF, não podem ser revelados porque se trata de uma ação reservada, relativa ao controle externo da atividade policial. A baixa do procedimento foi avalizada pela 7ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF.
Ação de R$ 1,2 milhão
Em paralelo, os voluntários ingressaram com ação cível contra a União e a Taurus, em que pedem indenização de R$ 1.270.800,00. Com áudios, vídeos, mensagens de texto e fotos, as vítimas afirmam que foram constrangidas e coagidas. O processo aponta conivência e omissão de agentes da PF, além de má-fé por parte da Taurus e contradições entre as duas rés. Frisa que o caso envolve “grande interesse público e social”.
“Hoje me sinto um arquivo vivo”
A carga milionária de fuzis e pistolas, ilhada no terminal de exportação, corria risco de roubo. Uma facção criminosa estaria planejando um ousado ataque, conforme a própria PF. Era preciso remover com urgência o arsenal.
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Desde 5 de maio atuando no resgate de pessoas e animais, principalmente em Eldorado do Sul, o morador de Capão da Canoa Nicolas Vedovatto, 27 anos, recebeu mensagem sobre uma missão sigilosa de salvamento de crianças. Comovidos, ele e o amigo Igor Garcia de Oliveira, 27, retornaram ao litoral para organizar as tarefas. Conseguiram dois barcos, suprimentos e mais cinco voluntários para ajudar, entre eles uma médica de 32 anos.
No local combinado na free way, na manhã de 9 de maio, o grupo se encontrou com os recrutadores. O emissário, que mora em Canoas, e uma mulher com o crachá da Taurus se apresentaram. Ela foi com os voluntários a outro ponto, onde disse que o resgate era, na verdade, de armas.
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Os voluntários afirmam que, surpresos e assustados, responderam que não participariam. Segundo eles, a funcionária da empresa disse então que, se não ajudassem, ficariam retidos durante o dia todo, até que a remoção das armas fosse concluída, porque se tratava de operação “extremamente secreta”.
Os voluntários acabaram indo e chegaram a organizar a logística inicial do transporte aquático. Dois deles partiram com as primeiras caixas do armamento, do aeroporto alagado ao caminhão estacionado na free way, sem nenhuma escolta policial.
Os federais que iriam junto nos barcos teriam chegado atrasados. Apareceram para o segundo dos vários traslados, de 20 minutos cada, sempre com os voluntários a bordo. A operação foi das 9 às 17 horas. Estavam no terminal, desde o início, cerca de dez funcionários da Taurus, entre eles a engenheira de produção acusada de recrutar os voluntários.
“Um ano após esse episódio extremamente traumático, o que a gente mais sente é que a empresa, mesmo diante de todas as provas, decidiu se posicionar na mídia como se fôssemos loucos e que nada disso aconteceu. Fomos forçados a ir e até hoje não entendemos a maldade de inventar um salvamento de crianças. Hoje me sinto um arquivo vivo, com medo de desaparecer, considerando que estamos lidando com a maior empresa de armas da América Latina e a força de elite da Polícia Federal”, declara Nicolas.
PF, Taurus e AGU se manifestam por nota
A Polícia Federal mantém o posicionamento do ano passado, quando, em nota à reportagem, negou a participação de voluntários.
A Taurus, na época, alegou o mesmo. Confirmou que a recrutadora apontada pelos voluntários é funcionária da empresa, mas, agora, não diz se ela continua. Quanto ao amigo da colaboradora, disse não conhecê-lo. Sobre a ação indenizatória, a empresa diz que “esse processo judicial não é procedente”.
Também em nota à reportagem, a Advocacia-Geral da União (AGU) diz que não há responsabilidade do governo no caso e joga uma possível culpa para a Taurus.
O que diz a PF
“A retirada das armas que estavam depositadas no Aeroporto Internacional Salgado Filho foi coordenada pela Polícia Federal, por meio do Comando de Operações Táticas (COT), grupo especializado em situações de risco, em articulação com a Fraport, administradora do Aeroporto Internacional Salgado Filho, e com a empresa proprietária da carga, sendo esses, exclusivamente, os participantes envolvidos com a logística de remoção do armamento.”
O que diz a Taurus
“Esse processo judicial não é procedente, conforme foi demonstrado e comprovado pela Taurus na sua defesa. A operação foi determinada e coordenada pela Polícia Federal e a empresa não realizou recrutamento de voluntários civis.
A Taurus não tinha responsabilidade pela carga, uma vez que estava depositada com a administração do Aeroporto Internacional Salgado Filho, a FRAPORT. A operação, na parte fluvial, foi conduzida pelo Comando de Operações Táticas (COT) da Polícia Federal, em ação conjunta com a FRAPORT, sendo todas as decisões estratégicas tomadas pelas autoridades responsáveis pela segurança no terminal de cargas. A Taurus, por sua vez, limitou-se a cumprir as determinações das forças de segurança, não tendo qualquer ingerência sobre o planejamento ou a execução da operação.
A empresa não recrutou, não enganou, não constrangeu e não coagiu os Autores a participarem da operação. A participação de alguns deles foi totalmente voluntária e limitada. E alguns deles inclusive se promoveram nas redes sociais, demonstrando satisfação com a repercussão do ocorrido.
A empresa não praticou qualquer ato ilícito, tampouco houve risco desnecessário à integridade dos autores, já que toda a operação foi acompanhada por forças de segurança federais e estaduais. Não há dano moral sofrido pelos autores, tampouco nexo causal que implique em qualquer responsabilidade para a empresa.”
O que diz a AGU
“A AGU já foi citada no referido processo e apresentou manifestação, oportunidade em que defendeu a inexistência de responsabilidade civil da União no caso.
Segundo a AGU, se houve algum ato que importe na responsabilização civil foi decorrente da conduta da empresa co-réu, proprietária do material bélico e responsável pelo seu transporte e armazenamento conforme as normativas específica de regência.”