Governo dos EUA restringe pesquisas sobre crise climática

Texto: Herton Escobar

Arte: Beatriz Haddad

Uma das primeiras ações de Donald Trump ao reassumir a presidência dos Estados Unidos, em 20 de janeiro deste ano, foi retirar os Estados Unidos do Acordo de Paris, o principal tratado internacional de combate ao aquecimento global e às mudanças climáticas. Até aí, nenhuma surpresa: Trump nunca reconheceu a existência de uma crise climática e já havia retirado os EUA do acordo no início de seu primeiro mandato, em 2017. Desta vez, porém, a notícia chegou com um desdobramento inesperado: a cientista-chefe da agência espacial americana (Nasa), Katherine Calvin, foi proibida de participar de uma importante reunião do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) que ocorreu na última semana de fevereiro, na China. 

O IPCC é a rede internacional de pesquisadores incumbida de organizar o conhecimento científico sobre as mudanças climáticas globais e produzir relatórios periódicos de referência, que servem para lastrear cientificamente os processos de negociação e tomada de decisões políticas sobre o tema no âmbito das Nações Unidas. A reunião plenária de fevereiro foi o ponto de partida para a confecção do próximo grande relatório do painel (conhecido como AR7), que deve ficar pronto em 2029.

O governo Trump não só vetou a participação de Calvin na reunião como retirou o financiamento de um grupo de especialistas americanos que forneciam apoio técnico e administrativo essenciais ao funcionamento do Grupo de Trabalho 3 do painel — do qual Calvin é copresidente. Dentro do IPCC, esse é o grupo de cientistas que trabalha com o tema da mitigação (estratégias para reduzir emissões e remover carbono da atmosfera), algo que vai totalmente na contramão da política econômica do novo governo americano. Trump cortou incentivos à transição energética e prometeu intensificar a exploração de petróleo pelos EUA — que já são o maior produtor de petróleo do mundo e o país que mais contribuiu, historicamente, para o aquecimento global. “Drill, baby, drill” (Perfure, baby, perfure), foi um dos lemas de sua campanha.

Trump e membros de seu gabinete frequentemente se referem à mudança climática como uma farsa criada para prejudicar a economia americana; ou como um problema de menor importância — apesar de todas as evidências científicas mostrarem se tratar de uma ameaça real e com consequências potencialmente catastróficas para a vida na Terra. 

“O governo Trump vai tratar a mudança climática pelo que ela é: um fenômeno físico global, que é um efeito colateral da construção do mundo moderno”, disse o novo secretário de Energia do governo americano, Chris Wright, em uma conferência no Texas, no início de março. “A cura foi muito mais destrutiva do que a doença”, completou ele, referindo-se às políticas de transição energética e segurança climática criadas pelo ex-presidente Joe Biden — e já revogadas pelo o governo Trump.

O negacionismo chegou ao ponto de vetar o uso de palavras relacionadas ao assunto. O jornal The New York Times publicou em 7 de março uma lista de termos que as diversas agências do governo americano foram orientadas a evitar ou até mesmo apagar completamente de suas comunicações desde o início da administração Trump. Entre elas estão “ciência climática”, “crise climática”, “energia limpa” e “poluição”.

A Agência de Proteção Ambiental (EPA), por exemplo, apagou o termo “mudança climática” de suas páginas na internet e anunciou em 12 de março que vai fazer “a maior desregulamentação ambiental da história” dos Estados Unidos. “Estamos cravando um punhal direto no coração da religião da mudança climática para reduzir o custo de vida das famílias americanas, liberar a energia americana, trazer empregos da indústria automobilística de volta aos EUA e muito mais”, afirmou o novo chefe da agência, Lee Zeldin, em um pronunciamento oficial.

Nos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), programas que estudam os impactos da mudança climática na saúde humana também deverão ser descontinuados, segundo reportagem da agência ProPublica

“Quer receber financiamento do governo americano para fazer ciência? Não pode mais falar em mudança climática; virou palavra proibida”, lamentou o pesquisador Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo e membro do IPCC.

Primeiras imagens geradas pelo satélite meteorológico GOES-19, da NOAA, em agosto de 2024, em diferentes espectros de luz – Foto: NOAA Satellites via Flickr – Domínio público

Ausência problemática

O IPCC não produz pesquisas próprias; seus relatórios, são baseados em uma análise criteriosa de todo o conhecimento científico disponível sobre os diversos temas relacionados à mudança do clima. Nesses contexto, segundo especialistas ouvidos pelo Jornal da USP, a ausência de representantes oficiais dos EUA nas reuniões pode não comprometer o trabalho do painel de forma tão significativa, já que grande parte da ciência que deverá lastrear a redação do próximo relatório já está disponível ou em vias de ser publicada. A preocupação maior é com uma possível interrupção de programas de monitoramento climático e diminuição da produção científica americana, o que criaria lacunas de conhecimento que precisarão ser preenchidas por outros países para não prejudicar as análises do IPCC a médio e longo prazo. 

“Se houver um impedimento por parte dos Estados Unidos no sentido de proibir ou não dar condições para que os cientistas possam continuar suas pesquisas, a contribuição dos EUA (para a ciência do clima) poderá diminuir sensivelmente”, disse a cientista Thelma Krug, que é pesquisadora aposentada do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e foi vice-presidente do IPCC de 2015 a 2023. “Então, você cria um gap de produção de conhecimento importante, que pode comprometer a avaliação científica do painel.”

Artaxo está confiante de que outros países terão condições de preencher essas eventuais lacunas científicas, mas ressalta que isso não acontecerá da noite para o dia, e que o enfrentamento das mudanças climáticas requer medidas urgentes.

Não está claro se o veto à participação de Calvin na reunião de fevereiro foi uma decisão pontual — talvez pelo fato de a reunião ser na China — ou se isso representa uma saída por completo do IPCC por parte dos EUA. 

Sem saber se o governo continuará a apoiar a participação de outros pesquisadores no painel, um grupo de universidades e a União Geofísica Americana criaram neste mês a Aliança Acadêmica dos Estados Unidos para o IPCC, uma iniciativa independente para facilitar a submissão de indicações de cientistas americanos para atuarem como autores na confecção do próximo relatório.

Cientistas do mundo todo se reuniram em fevereiro de 2025 em Hangzhou, na China, para a reunião plenária que deu início aos trabalhos de produção do próximo grande relatório do painel. A cientista-chefe da NASA, Katherine Calvin, foi proibida de participar do encontro pelo governo Trump – Foto: IPCC Secretariat/via Flicker

Um dos atores mais importantes nesse cenário é a NOAA (National Oceanic and Atmospheric Administration), a agência federal americana que monitora o clima e os oceanos do planeta. Criada em 1970, a  agência emprega cerca de 12 mil pessoas ao redor do mundo (incluindo 6,7 mil cientistas e engenheiros) para produzir uma série de produtos e serviços essenciais para a sociedade, incluindo previsão do tempo, alertas de eventos climáticos extremos e monitoramento de estoques pesqueiros e outros recursos naturais — tanto em terra quanto no mar. Ela opera uma extensa rede de satélitesboias, embarcações e estações de pesquisa, que são uma fonte vital de dados sobre o que está acontecendo com o clima e os oceanos do planeta.

A agência está no radar de Trump há algum tempo. O Projeto 2025, uma espécie de plano de governo extra-oficial elaborado por apoiadores do presidente antes da eleição, descreve a NOAA como parte de uma “indústria de alarmismo climático”, que é “nociva à prosperidade futura dos Estados Unidos” e deveria ser “desmantelada”, com várias de suas funções eliminadas ou transferidas para a iniciativa privada.

Na prática,até 20 de março, cerca de 1,9 mil funcionários da NOAA já haviam sido demitidos ou pedido demissão — uma redução de 15% no quadro total de funcionários da agência. Os números são compilados de reportagens da imprensa americana, já que não há comunicados oficiais do governo sobre essas demissões.

Há uma grande apreensão também sobre o que pode acontecer com o Laboratório de Monitoramento Global da NOAA no Havaí, que dá suporte ao funcionamento do Observatório Mauna Loa, responsável — entre outras coisas — pelo mais antigo e contínuo programa de monitoramento da concentração de dióxido de carbono na atmosfera, em operação desde 1958. Os dados gerados por esse monitoramento, conhecidos como “curva de Keeling”, foram fundamentais para comprovar cientificamente a realidade do aquecimento global nas últimas décadas. O prédio que abriga o laboratório aparece numa lista de mais de 20 instalações da NOAA que poderão ter seu contrato de locação cancelado por ordem do Departamento de Eficiência Governamental (DOGE), liderado pelo bilionário Elon Musk, que está fazendo cortes profundos em todo o orçamento federal.

Astronautas posam para fotos na sede da NASA em Washington, usando óculos para observação de um eclipse solar, em março de 2024 – Foto: NASA/Aubrey Gemignani via Flickr – CC BY-NC-ND 2.0

Nem mesmo a icônica agência espacial Nasa — possivelmente a instituição científica mais famosa do planeta — está passando incólume. Em 10 de março, a agência demitiu mais de 20 pessoas e fechou três unidades, entre eles o Escritório de Cientista-Chefe, que era liderado por Calvin, e o Escritório de Tecnologia, Políticas e Estratégias. Ambos tinham a função de assessorar cientificamente as decisões da diretoria da Nasa, que deverá ser comandada pelo empresário Jared Isaacman, amigo e parceiro de Musk na área espacial. (Isaacman foi indicado por Trump, mas ainda precisa ser sabatinado pelo Senado para assumir o cargo.) O outro escritório fechado era o que lidava com questões de diversidade, equidade e inclusão (DEI) dentro da agência espacial.

Pelo menos até agora, a Nasa foi poupada das demissões em massa que atingiram outras agências federais; mas ela, também, está obrigada a apresentar planos de redução da sua força de trabalho e do seu orçamento até 14 de abril, assim como a NOAA e todas as outras agências do governo federal. O orçamento de pesquisa da Nasa é da ordem de US$ 7 bilhões. Além de colocar astronautas no espaço e estudar planetas distantes, a agência é uma liderança global em pesquisas sobre o clima e a vida na Terra.

Momento crítico

Os cortes na ciência americana acontecem num momento crítico de agravamento da crise climática do planeta. 2024 foi o ano mais quente já registrado na era moderna (desde que medidas diretas de temperatura começaram a ser feitas, 175 anos atrás) e o primeiro a ultrapassar o “limite de segurança” de 1,5 grau Celsius de aquecimento acima da era pré-industrial (1850 – 1900). 

Não só isso: os últimos 10 anos foram a década mais quente já registrada pelo homem; a concentração de dióxido de carbono na atmosfera é a mais elevada dos últimos 800 mil anos; a elevação do nível do mar está acelerando; a cobertura de gelo da Ártico está encolhendo cada vez mais e o acúmulo de calor nas águas do oceano não para de crescer, segundo o relatório “Estado do Clima Global 2024”, publicado em 19 de março pela Organização Meteorológica Mundial (OMM). 

Vale destacar que esses relatórios produzidos pela OMM, pelo IPCC e outras agências que monitoram a saúde do planeta só são possíveis graças ao trabalho contínuo da NOAA, da Nasa e de outras agências de pesquisa e universidades ao redor do mundo, que produzem os dados e o conhecimento necessários para a sua elaboração. É justamente essa rede coletiva que seria prejudicada pelo enfraquecimento da ciência americana.

“Podemos perder acesso a dados que são cruciais para a tomada de decisões”, avaliou Thelma Krug. “Estamos num momento em que precisamos de mais informações, não de menos.”

O climatologista Carlos Nobre, também pesquisador aposentado do Inpe e hoje titular da Cátedra de Clima & Sustentabilidade, do Instituto de Estudos Avançados (IEA) USP, qualifica o presidente americano como um novo “ponto de não retorno” (tipping point, em inglês) do sistema climático global. Ou seja, um agente capaz de desencadear mudanças drásticas e irreversíveis na maneira como o clima do planeta funciona, assim como a floresta amazônica e a calota de gelo da Groenlândia. “Tem mais de 25 pontos de não retorno (…); e agora, infelizmente, surge mais um enorme ponto de não retorno político: o trumping point”, afirmou Nobre, em um evento sobre adaptação climática, organizado pelo Instituto Talanoa, em 25 de fevereiro.

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