Ela assinou contrato suspeito de R$ 1,3 milhão mensais aos cofres do governo do Rio Grande do Sul. Recebeu diárias por trabalho no litoral enquanto participava de eventos oficiais na capital e passeava na cidade natal, no interior gaúcho. Após denúncias de servidores do órgão, a diretora do Instituto-Geral de Perícias (IGP), Marguet Ines Hoffmann Mittmann, deixou o cargo. Pediu exoneração no último dia 17 sob argumento de “motivos pessoais”.
Marguet é a idealizadora do 1 Seminário Estadual de Perícia Criminal, realizado no dia 12 de dezembro no Grêmio Náutico União, em Porto Alegre. Dentro da programação, esteve também à frente da entrega da medalha Edmond Locard para 52 homenageados, entre secretários de Estado, chefes de vários órgãos e membros do Judiciário e Ministério Público, além de políticos em geral.
A distinção havia sido criada oito meses antes, por decreto do governador Eduardo Leite (PSDB), para o IGP homenagear “pessoas que tenham prestado serviços relevantes à causa pericial”. Leite e o vice-governador, Gabriel Souza (MPB), estavam entre os agraciados, mas não compareceram. Receberam a medalha no Palácio Piratini.
Evento patrocinado
Foi uma noite de gala, com comidas, cervejas e espumantes. Um dos patrocinadores foi a fornecedora de carteiras de identidade Valid Soluções. Quinze dias depois (17 de dezembro), a multinacional, que tem representação em Porto Alegre, recebeu um aditivo de contrato de R$ 1,3 milhão mensais assinado pela então diretora do IGP.
A justificativa seria a necessidade de passar de R$ 16,15 para R$ 20,15 o valor pago pelo governo, por documento, em razão de suposto aprimoramento no serviço. Um reajuste de 24,77%, que resultaria em custos adicionais de R$ 15,6 milhões ao ano. O aditivo conclui que se trata de um “preço justo e suficiente”.
Comissão pede explicações e questiona gastos
No mesmo dia do aditivo, a Comissão de Fiscalização do IGP elaborou um parecer que indica falta de transparência e de critérios, além da possibilidade de gastos desnecessários. O documento, ao qual a reportagem teve acesso, afirma que, na proposta da Valid, não está especificada a razão do reajuste, o acompanhamento que a empresa faria aos serviços e as novas licenças de software para os 400 postos de identificação no RS.
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“Diante da inexistência de critérios para implantação dos novos serviços e seus respectivos valores, sugerimos que a empresa seja notificada a apresentar um cronograma técnico de implantação, ou mesmo que o aditivo seja retificado para fazer constar que o novo preço só entrará em vigor com a implantação total dos serviços descritos”, diz o relatório assinado pela presidente da Comissão, Flávia Ferreira.
O parecer ainda menciona que o Centro de Tecnologia da Informação e Comunicação do Estado do RS (Procergs) desenvolveu no ano passado, a pedido da própria direção do IGP, uma extensão e melhoria do sistema de identificação de indivíduos similar à contratada no aditivo. Ou seja, conforme a Comissão, o governo não precisaria arcar com as despesas.
Colegas apontam conflito de interesses
A Comissão de Fiscalização avaliou questões técnicas, sem mencionar o patrocínio da Valid a uma confraternização do órgão público contratante. Para o grupo de servidores do IGP que fez a denúncia à Ouvidoria-Geral do Estado, se trata, no mínimo, de “conflito de interesses”.
“Isso levanta suspeitas graves”, diz uma funcionária do órgão, que pede para não ser identificada. E as diárias, conforme ela, deixaram colegas “chocados”.
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“Nenhum diretor precisa estar tantos dias seguidos na Operação Verão. Nem há lugar para a direção trabalhar lá. Existem momentos específicos em que a direção é requisitada na praia, mas jamais seriam 30 dias corridos. Não tem como compreender o porquê de uma pessoa num cargo tão importante, com uma remuneração considerada muito boa, tomar tal decisão.”
Não se manifestaram
Servidora de carreira do IGP, aprovada em concurso como perita criminal em 2009, Marguet foi contatada ontem pela reportagem, mas não deu retorno. Segundo o órgão, ela está de férias e, quando retornar, será para o cargo de carreira. Como diretora, recebia salário na casa dos R$ 38 mil. A Valid também não se manifestou.
A medalha
O decreto governamental determina a forma como a medalha deve ser produzida, com a foto do francês Edmond Locard esculpida em metal. O personagem é considerado pioneiro da ciência forense. Morreu em Lyon, em 1966, aos 89 anos.
Chefe das perícias teria burlado bonificações
As irregularidades em diárias vieram à tona pelas redes sociais da própria beneficiária e de órgãos do governo. Em uma das postagens, Marguet aparece entregando a medalha Edmond Locard à secretária estadual de Planejamento, Governança e Gestão (SPGG), Danielle Calazans, no dia 18 de dezembro, no gabinete da homenageada, em Porto Alegre.
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A SPGG divulgou um vídeo em que a titular se emociona, entre lágrimas, durante a breve solenidade. Marguet não podia estar ali. Recebia diárias desde 13 de dezembro para chefiar a Operação Verão em Capão da Canoa. Ganhou a bonificação de forma ininterrupta até o dia 31 do mesmo mês, que totalizou R$ 3.718,69.
Foi longe
Além de imagens em eventos oficiais na capital durante o período, ela postou vários stories de confraternizações natalinas em família na cidade de São Paulo das Missões, quase na fronteira com a Argentina, a 650 quilômetros de Capão da Canoa.
Foto: Reprodução
As diárias da Operação Verão foram imediatamente renovadas, do dia 1 a 17 de janeiro, no valor de R$ 3.316,67. E Marguet continuou postando atividades fora de Capão da Canoa, como a presença na festa de aniversário do vice-governador, na noite de 2 de janeiro, no Galpão Crioulo do Palácio Piratini.
Nos dias 11 e 16, publicou entrevistas concedidas sobre o caso do bolo envenenado em Torres a emissoras de televisão na capital e, no dia 14, registrou participação na solenidade de transmissão de cargo de governador.na Assembleia Legislativa.
Governo diz que valores do aditivo não foram pagos
Por meio de nota enviada na noite desta segunda-feira (24) à reportagem, o governo diz que, em relação ao aditivo contratual, não houve prejuízo aos cofres públicos. “Não foi realizado nenhum pagamento para a Valid referente ao novo valor previsto no aditamento, tendo sido a empresa prestadora do serviço notificada para, no prazo legal, apresentar defesa quanto a apontamentos realizados pela Comissão de Fiscalização.”
O comunicado detalha as negociações: “O IGP esclarece que as tratativas para o aditamento contratual se iniciaram em outubro de 2024, quando foi solicitado à empresa uma proposta que contemplasse a possibilidade de emissão de carteiras de identidade nacional (CIN). No dia 19 de dezembro de 2024, a Comissão de Fiscalização do Contrato reuniu-se com a Direção-Geral do IGP a fim de discutir a proposta de melhorias tecnológicas apresentada pela Valid, sendo aprovada pela referida comissão. Após isso, a possibilidade de aditamento contratual foi aprovada pela PGE/RS e pela Cage/RS.”
A nota frisa ainda que “estamos avaliando a possibilidade de utilização de eventuais sistemas da Procergs. A direção do IGP está em tratativas junto com as equipes técnicas a fim de avaliar a viabilidade técnica de uso desses sistemas.”
Em relação às diárias, afirma que o governador e o secretário da Segurança Pública, Sandro Caron, outro agraciado com a medalha do IGP, “não tinham conhecimento de que a então diretora do IGP estava designada para a Operação Verão em Capão da Canoa com os valores de diárias informados pela reportagem. Posteriormente, a diretora fez o estorno das diárias oferecidas do dia 22 a 27 de dezembro de 2024 e nos dias 09, 10, 11, 16 e 17 de janeiro de 2025.”