Atravessando a fronteira: venezuelana conta sua história como imigrante no Brasil

“Um país acolhedor”. É assim que a dona de casa Sandra Lisbeth Quintero Villegas, de 46 anos, moradora do bairro São José, de Esteio, se refere ao Brasil. Ela mora com o marido, o operador de máquinas Carlos Rojas, de 38 anos, e faz parte do grupo de 125 pessoas que, em fevereiro de 2018, atravessaram a fronteira da Venezuela em busca de melhores condições de vida por meio do programa Acolhida, do governo federal.

Sandra Villegas mora em Esteio há seis anos e não se arrepende de sua decisão



Sandra Villegas mora em Esteio há seis anos e não se arrepende de sua decisão

Foto: Amanda Krohn/Especial

Atualmente, Esteio possui 1.298 moradores venezuelanos e outros 132 de países diversos, como Angola, Cuba, Senegal e Peru. Sandra, que possui três filhos (uma de 28, um de 22 e um de 20), já trouxe mais de 50 familiares para o Brasil e ainda tem mais de 40 no país de origem, incluindo parentes e agregados, chegou primeiro no município de Boa Vista, em Rondônia.

Em setembro daquele ano, mudou-se para Esteio por meio de um processo de interiorização (ato de afastar-se da fronteira do país para morar em seu interior), proporcionado pela Operação Acolhida. Atualmente, a cidade conta com ações como a Integrando Horizontes, que passou, neste mês, a ter um local para atendimento presencial junto ao Espaço Mundo.

Ao chegar às terras brasileiras, a venezuelana ficou encantada com a forma como foi recebida, junto a diversos outros imigrantes de seu país. “Foi uma festa, tinha um monte de gente da prefeitura, da ONU e do exército para nos receber, nós fomos uma das primeiras famílias. Eu chorava de emoção com a recepção que tivemos”, recorda.

Desafios no Brasil

No começo, nem tudo foram flores: Sandra e sua família chegaram a viver em uma praça, em situação de rua, por cinco meses antes de serem encaminhados a um abrigo. Mas isso não os abalava. “O Brasil é um país muito acolhedor, todos nos ajudavam doando roupa, comida, agasalhos…”, conta. Ela e sua família ficaram quatro meses em um abrigo em Rondônia e outros cinco em um abrigo de Esteio, antes de conseguirem alugar uma casa.

Para ela, isso já era melhor do que a situação vivida em seu país de origem. Ao contar sobre a dura realidade deixada para trás, Sandra não conteve as lágrimas. “Ganhávamos 400 bolívares (moeda venezuelana) por semana, e só dava para comprar ovos, farinha de trigo, arroz e queijo, em uma quantidade que não dava para cinco pessoas”, diz, com a voz embargada. “Tinha filas enormes nos mercados para poder comprar nosso alimento. Às vezes, quando chegávamos lá, a comida já tinha acabado”, continua.

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Em algum tempo, Sandra Quintero e seus familiares conseguiram empregos e uma casa para morar. Sendo assim, só restava uma coisa a resolver: a barreira do idioma. Trabalhando como empregada doméstica, Sandra aprendeu o português “na marra”. “A gente fazia um curso oferecido pela prefeitura, mas às vezes a minha chefe me passava uma ordem e eu não entendia. Então, eu usava um tradutor no meu celular”, diz.

Além do aplicativo, havia outros aliados em seus aprendizados, como os filmes que assistia em português com legendas em espanhol – semelhante à forma como muitos brasileiros fazem para aprender inglês e outros idiomas. “Como eu precisava falar português todos os dias para trabalhar, aprendi em menos de um mês”, afirma.

A farinha de milho era um dos poucos itens que Sandra conseguia consumir na Venezuela



A farinha de milho era um dos poucos itens que Sandra conseguia consumir na Venezuela

Foto: Amanda Krohn/Especial

A vida no Brasil 6 anos depois da imigração

Seis anos depois de sua chegada ao Brasil, a fome, para Sandra Quintero, é coisa do passado. Embora esteja desempregada desde 2021 e não possa trabalhar devido a um problema de saúde, ela e sua família não passam sufoco. “Meu marido trabalha como operador de máquinas em uma empresa boa, então não estamos passando dificuldade”, explica. “De tanto ficar em casa, até recuperei meu sotaque”, acrescenta, em um tom brincalhão.

Devido a um problema em sua coluna que iniciou no ano em que perdeu seu emprego e exigiu uma cirurgia em maio de 2024, Sandra recebeu recomendações médicas para não trabalhar durante um ano. Com isso, ainda terá que esperar quatro meses para voltar à ativa.

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Mesmo com os desafios que vive e os impostos que não existiam em seu país (como contas de água e luz), a dona de casa considera-se mais confortável agora. A saudade que fica é dos familiares, com quem conversa frequentemente pelo Whatsapp, e da praia La Guaira.

Retribuindo a solidariedade

Para retribuir o afeto recebido, Sandra mantém o grupo “Amigos da Solidariedade” no Whatsapp com outras duas amigas, Sonia Martins e Rosa. “Criamos esse grupo em 2019, quando nos ajudamos a montar casas para imigrantes venezuelanos que saíram do abrigo. Ele começou a funcionar mesmo em 2020, quando começamos a receber bastante coisa”, diz. Atualmente, o grupo possui mais de 30 membros e é utilizado para ajudar qualquer pessoa que precise de itens, seja roupas ou mobília para a casa.

“Imigrantes são pessoas de potência”, diz secretária de Direitos Humanos

A titular da Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos (SMCDH) de Esteio, Katiane Marques, defende que projetos como o Acolhida são fundamentais. Dentre os venezuelanos presentes no município, 230 possuem emprego com carteira assinada, 34 são empreendedores e dois são Microempreendedores Individuais (Meis). Além disso, há ainda 227 matrículas de imigrantes venezuelanos na rede pública de ensino.

“A palavra correta para isso tudo é empatia. Ouvimos toda a tristeza deles, que vêm do processo de interiorização e o Espaço Mundo contribui absurdamente com a qualidade de vida deles, que chegam sem rumo”, afirma. “A gente sempre trabalha com a ideia de que eles são pessoas potentes e se pergunta ‘quem de nós teria a coragem de atravessar a fronteira com um filho no colo?’”, completa.

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