CASO INDEAL: R$ 270 milhões em bitcoins sumiram após apreensão da Polícia Federal

Até bitcoins apreendidos pela Polícia Federal sumiram de conta vinculada à InDeal Consultoria em Mercados Digitais, empresa de Novo Hamburgo que lesou milhares de investidores. O desfalque, mantido sob sigilo judicial, representava cerca de R$ 270 milhões na cotação volátil desta terça-feira (28).

Documentos FBI | abc+



Documentos FBI

Foto: GES

A reportagem teve acesso exclusivo aos intrincados bastidores da apreensão. A começar pela forma como ela aconteceu. Oficialmente, veio à tona por meio de um comunicado do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, em novembro de 2020, que anunciava a localização de uma conta milionária do trader Marcos Antônio Fagundes, 51 anos, um dos cinco sócios da InDeal.

Mas a descoberta da carteira de bitcoins ocorreu bem antes e não foi no exterior. Documentos confidenciais revelam que a apreensão se deu na própria casa de Fagundes, no Centro de Campo Bom, na manhã de 21 de maio de 2019. É a data da deflagração da Operação Egypto, que resultou na prisão dos cinco donos e cinco colaboradores ligados à direção, além do fechamento da empresa sob acusação de fraudes financeiras.

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Acordado por policiais federais com mandados de busca e prisão preventiva, por volta das 7 horas, Fagundes foi convencido a colaborar com as investigações para obter possíveis benefícios processuais. O principal requisito era revelar contas pessoais de criptomoedas formadas com o patrimônio da InDeal. Carros, dinheiro e joias, entre outros objetos de valor, estavam sendo apreendidos na residência.

Os números

O trader mostrou aos policiais como entrar na conta dele na Poloniex, uma das maiores corretoras de criptomoedas do mundo. O saldo era de 3.991,81 bitcoins, que na época representavam R$ 128,3 milhões, conforme o ainda sigiloso auto de apreensão. Hoje, o equivalente a R$ 2,3 bilhões.

Ainda na residência do detido, sob argumento de garantir a preservação da conta, os policiais alteraram a senha. Ficava pendente a colaboração do governo dos Estados Unidos, país onde Fagundes havia feito o investimento, para a repatriação dos ativos.

A surpresa veio dos Estados Unidos

O embaraço veio quase um ano depois. Em documento reservado emitido no início de abril de 2020, ao qual a reportagem teve acesso, o FBI, como é conhecida a Polícia Federal norte-americana, informou à PF brasileira que havia efetivado, no dia 27 de março, o bloqueio das criptomoedas de Fagundes.

O saldo era de 3.537,21 bitcoins, número que sempre foi divulgado como o total apreendido. As 454,6 unidades a menos nunca foram mencionadas. A diferença foi reportada em caráter secreto entre a PF, o Ministério Público Federal e a Justiça Federal.

Em diferentes documentos, há pedidos de quebras de sigilos na tentativa de identificar quem possa ter feito saques na conta sob guarida judicial. Um ofício da PF ao MPF e à 7ª Vara Federal de Porto Alegre, ainda em 2020, denota a preocupação.

“Considerando a gravidade dos elementos agora em debate é que se faz necessária/imprescindível a adoção de todas as providências, em solo brasileiro ou americano, para a identificação de qualquer pessoa que tenha realizado movimentações com aquela conta, motivo pelo qual se busca nova autorização judicial, agora voltada à obtenção de dados de internet”, conclui o comunicado reservado.

Outro mistério do dinheiro está em Brasília

Mesmo os 3.537,21 bitcoins estão com paradeiro desconhecido, conforme publicado pelo Grupo Sinos no último dia 5. Nem o juiz da Vara Regional Empresarial de Novo Hamburgo, Alexandre Boeira, que decretou a falência da InDeal, consegue informações. A massa falida aguarda a chegada do dinheiro para a indenização de mais de seis mil clientes habilitados.

Em maio de 2023, a 7ª Vara Federal de Porto Alegre informou à reportagem que a carteira de criptomoedas tinha sido vendida, em outubro do ano anterior, por 68,5 milhões de dólares.

A repatriação dos ativos é tratada em processo de cooperação internacional. O Ministério da Justiça, como representante do governo brasileiro na transação, enviou um e-mail sucinto à reportagem: “O Ministério da Justiça e Segurança, por meio da Secretaria Nacional de Justiça, esclarece que as informações sobre o processo correm em sigilo”.

A advogada Nathália Costa, sócia da Medeiros Administração Judicial, gestora da massa falida da InDeal, reage em tom de inconformidade. “Com esse dinheiro, daria para pagar todos os credores habilitados em 30 dias, mas o problema é que a venda desses bitcoins sequer está no processo. Não há extrato, nada. Gostaríamos de saber do paradeiro e por que esse dinheiro não chegou ainda.”

Para defesa do trader, é uma “diferença intrigante”

Procurada pela reportagem, a defesa de Fagundes define como “intrigante” a diferença entre o que foi apreendido em Campo Bom e o saldo que apareceu no ano seguinte na conta nos Estados Unidos. “Esperamos que seja esclarecido, pois não estamos tratando de quantia irrisória. É um valor significativo”, declara o advogado Martin Gross, que atua no processo com o colega criminalista Filipe Trelles.

“Toda essa questão envolvendo bitcoins está bem duvidosa. O Fagundes sempre teve interesse em trazer esse dinheiro para o Brasil e pagar os clientes, pois a empresa InDeal nunca ficou devendo aos investidores até a deflagração da operação e o consecutivo bloqueio das contas, fazendo com que não fosse mais possível repassar aos investidores”, acrescenta Gross.

Entenda o caso

A InDeal foi fechada na manhã de 21 de maio de 2019, pela Operação Egypto da Polícia Federal, com a prisão de cinco sócios e cinco colaboradores mais próximos. Todos foram soltos.

No mesmo dia, foram apreendidos mais de R$ 1 milhão em dinheiro e vários bens de luxo, entre carros, jóias e roupas. A maior parte dos mandados foi cumprida em cidades como Novo Hamburgo, São Leopoldo, Campo Bom e Estância Velha. Imóveis de alto padrão também foram colocados à disposição da Justiça.

Com a promessa de juros de 15% ao mês, a InDeal atraiu milhares de investidores e arrecadou R$ 1,1 bilhão desde 2017. Os rendimentos, conforme a empresa, eram oriundos de aplicações em bitcoins. O maior prejuízo individual foi de um médico do Vale do Sinos, que aplicou R$ 800 mil.

O nome da operação sugere que a InDeal era uma pirâmide financeira. Os crimes apurados são de operação de instituição sem autorização legal, gestão fraudulenta, apropriação indébita, lavagem de dinheiro e organização criminosa.

Em fevereiro de 2023, Vara Regional Empresarial de Novo Hamburgo decretou a falência da InDeal, o que permitiu que clientes lesados pudessem requerer indenizações por meio da administradora da massa falida.

No dia 19 de janeiro do ano passado, os dez que tinham sido presos e mais cinco réus foram condenados pela 7ª Vara Federal de Porto Alegre a penas somadas de mais de 200 anos de prisão. Estão recorrendo em liberdade. Alegam que não agiram de má-fé.

Justiça Federal emite nota

Em nota enviada na tarde de ontem, a Justiça Federal não trata da diferença de bitcoins questionada pela reportagem, mas afirma que “as providências necessárias à repatriação dos criptoativos estão em andamento” e que “a repatriação de criptomoedas é procedimento complexo”. O MPF ficou de responder nesta quarta. A PF não se posicionou.

Veja a íntegra da nota:

“Cumpre informar que tudo o que foi objeto de bloqueio está bloqueado. Os bens dos sócios e da empresa já estão a disposição do Juiz da falência. Os demais bens aguardam a vinda da desconsideração da pessoa jurídica para atingir os demais réus. 3.537,21068616 BTC’s custodiados no exterior não estão nem nunca estiveram à disposição do juízo criminal, que solicitou assistência jurídica em matéria penal ao Governo dos Estados Unidos da América para apreensão e alienação antecipada dos ativos constritos naquele país. Houve a apreensão dos criptoativos, havendo REGIS LIPPERT FERNANDES, TÁSSIA FERNANDA DA PAZ e FRANCISCO DANIEL LIMA DE FREITA, assinado documento elaborado pelas autoridades norte-americanas de ciência, mediante o qual foi oportunizada, inclusive, eventual contestação perante as autoridades dos Estados Unidos. ANGELO VENTURA DA SILVA e MARCOS ANTÔNIO FAGUNDES recusaram-se a firmar o documento, mas foram cientificados pelo Juízo. O pedido do Juízo Falimentar de que fosse requisitada às autoridades dos Estados Unidos a transferência para a conta da Massa Falida foi indeferido, porque, além de não estar à disposição da 7ª Vara Federal de Porto Alegre, até que seja repatriado, a solicitação de assistência jurídica internacional se deu em matéria penal. As providências necessárias à repatriação dos criptoativos estão em andamento desde 03/07/2023, inclusive, já tendo sido encaminhada a sentença condenatória proferida em 29/01/2024, bem como em 27/01/2025 solicitadas informações acerca da alienação pelas autoridades norte-americanas. A repatriação de criptomoedas é procedimento complexo, que demanda a observância de diversos trâmites formais e envolve a atuação coordenada dos Estados brasileiro e estrangeiro e depende do julgamento definitivo, o qual não ocorreu, já que pende de julgamento as apelações no TRF4 desde 08/11/2024. Na sentença condenatória proferida pela 7ª Vara Federal de Porto Alegre, foi decretado o perdimento em favor dos terceiros lesados, dos bens, valores, ativos e criptoativos apreendidos e sequestrados, inclusive dos criptoativos ou do produto da alienação dos criptoativos que se encontram nos Estados Unidos, após o trânsito em julgado e a repatriação. Foi fixado, para fins de reparação do dano, o valor mínimo de R$ 448.623.452,35 (quatrocentos e quarenta e oito milhões, seiscentos e vinte e três mil quatrocentos e cinquenta e dois reais e trinta e cinco centavos), em maio/2019. Dentre os fins penais de repatriação de ativos, inclui-se a reparação de danos, sendo que o produto da alienação dos ativos poderá vir a servir para o ressarcimento das vítimas, uma vez que seja confirmada e transitada em julgado a sentença penal já proferida pela 7ª Vara Federal de Porto Alegre e que se encontra em grau recursal em razão das apelações interpostas.”

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