Câncer de boca: acúmulo de proteína induz transformação maligna em células

Texto: Carolina Castro* / Arte: Simone Gomes / Jornal da USP

Pela primeira vez, pesquisadores da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP) da USP demonstram que o aumento de uma proteína que regula moléculas formadoras de tecidos, membranas e sinalizadoras celulares está relacionado com o desenvolvimento e a progressão do câncer de boca.

O estudo, publicado na revista Biochim Biophys Acta Mol Cell Res, teve como objetivo desvendar o papel da esfingosina quinase 2 (SK2) em tumores orais. A SK2 é uma enzima que, ao lado da SK1, tem função crucial na regulação dos esfingolipídeos (lipídios essenciais na composição das membranas que atuam como sinalizadores celulares). De acordo com os pesquisadores, embora a SK1 tenha sido amplamente investigada em diversos tipos de câncer, incluindo o de cabeça e pescoço, a SK2 permanece pouco compreendida.

O grupo verificou que o excesso de SK2 acarreta alterações nas características e comportamentos de células epiteliais orais não tumorais, transformando-as em “células com fenótipo tumoral altamente agressivas”, com atuação “até mesmo na plasticidade celular”, informa a professora Andréia Machado Leopoldino, coordenadora da pesquisa.

Além de induzir a transformação maligna, a pesquisa mostrou que a SK2 contribui para aumentar a formação de tumores a partir de células derivadas de metástase de câncer oral. A professora Andréia ensina que essa enzima desempenha diversos papéis biológicos importantes na regulação de diferentes vias e processos celulares, mas, quando em quantidades elevadas, exerce “o papel intrigante de um promotor de tumor oral”.

Andréia Machado Leopoldino - Foto: sites.usp.br/lmscc

Andréia Machado Leopoldino – Foto: sites.usp.br/lmscc

A equipe da USP acredita que esses resultados devem contribuir para os tratamentos oncológicos pois, “na prática oncológica, a esfingosina quinase 2 e os esfingolipídios podem ser potenciais biomarcadores, ou seja, moléculas que podem ser medidas em termos de diagnóstico e prognóstico, auxiliando a avaliação médica do paciente, o que é extremamente importante”, afirma a professora em relação a futuros estudos clínicos que deverão empreender. Andréia Leopoldino adianta que se tratam de informações que devem auxiliar na melhor compreensão da resistência da doença aos tratamentos quimio e radioterápicos.

Superexpressão de enzima e plasticidade celular

Para verificar o papel da SK2 no câncer de boca, foram usadas células saudáveis (queratinócitos orais não tumorais) e células de carcinoma espinocelular oral (relacionadas ao câncer oral). Como abordagem, todas essas linhagens celulares foram expostas a uma superexpressão (alta produção) da proteína SK2 , enquanto que a “interferência de RNA para a SK2” foi usada apenas nas células de carcinoma oral, informa a pesquisadora.

A superexpressão é o aumento da quantidade de proteína dentro da célula causado por uma técnica de manipulação genética. Na pesquisa, a técnica utilizada foi o vetor de expressão que contém o DNA para que a célula produza mais proteínas, no caso a SK2. As alterações geradas por essa mudança acarretaram nas características malignas da célula, ou seja, no surgimento do câncer.

A superexpressão de SK2 interfere nas mitocôndrias e aumenta o potencial tumorigênico das células HN12, induzindo a transformação maligna das células – Imagem: reprodução do artigo

A superexpressão de SK2 interfere nas mitocôndrias e aumenta o potencial tumorigênico das células HN12, induzindo a transformação maligna das células – Imagem: reprodução do artigo

Nos queratinócitos não tumorais, o aumento da enzima foi capaz de transformar as células em uma linhagem de tumor altamente agressiva, alterando completamente sua plasticidade. Enquanto que, na linhagem de carcinoma oral já agressiva, o acúmulo da enzima desempenhou um papel significativo na proliferação dessas células. Esses efeitos foram confirmados nos experimentos in vivo usando um modelo de xenoenxerto em camundongo, onde foi observada a formação de tumores ainda maiores, “indicando o aumento do potencial proliferativo e de formação de tumores de ambas linhagens celulares”, conta a doutoranda Lais Brigliadori Fugio, uma das autoras do estudo.

Quanto à interferência do RNA (mecanismo celular responsável pelo silenciamento da expressão gênica), observaram que a enzima em grande quantidade aumentou a “plasticidade celular”. Segundo a professora Andréia, a plasticidade celular está diretamente relacionada com tumores altamente agressivos, já que é através dela que a célula tem a capacidade de sobreviver sem estar aderida a um tecido, com habilidade ainda de fixar e crescer em diversas regiões do organismo ao seguir pela corrente sanguínea ou por vasos linfáticos até linfonodos e outros tecidos. Essa característica é chamada metástase.

A professora afirma que, após a exposição à superexpressão da SK2, como as células orais vão perdendo a característica de ficar aderida à placa de cultura, passam a apresentar um fenótipo (característica produzida pela interação dos genes entre si e com o ambiente) mesenquimal (com capacidade de se diferenciar), “em que ela muda essas proteínas de adesão e começa a expressar proteínas que vão permitir que ela consiga invadir o tecido, degradar a matriz extracelular e chegar até os vasos sanguíneos ou vasos linfáticos, o que é muito comum no câncer de boca”.

O aumento da proliferação das células que superexpressam SK2, segundo os pesquisadores, está relacionada com a perda da capacidade de fazer a verificação de danos no DNA celular. O fato normalmente está associado com a parada do ciclo celular, ou seja, mesmo apresentando erros em seu genoma, essas células não param de se reproduzir, o que favorece o desenvolvimento do tumor e resistência a terapias.

Além disso, a indução da autofagia (processo em que a célula digere as próprias organelas e estruturas) e a não ativação da apoptose (processo fisiológico que elimina células desnecessárias ou defeituosas) das células com acúmulo de SK2 melhoraram a capacidade das células de sobreviverem em condições de estresse. Na teoria, adianta Lais, esse quadro indica que essas células podem ser mais resistentes à morte celular induzida durante um tratamento de quimioterapia ou radioterapia.

Esfingolipídeos como biomarcadores para câncer de boca

Segundo o Observatório Global do Câncer (Globocan), o tumor de cabeça e pescoço é o sexto tipo mais comum no mundo, com mais de 931 mil novos casos e 498 mil mortes registradas em 2020. Ainda segundo o Globocan, a previsão da incidência de câncer deve aumentar, alcançando os 47% até 2040.

Com base nesses dados, a equipe da USP acredita que seus achados sobre os esfingolipídeos podem contribuir para novas abordagens em prevenção e em tratamentos desses tumores. Os experimentos com animais mostraram que a diminuição ou inibição do SK2 foi capaz de reduzir o desenvolvimento do câncer na língua dos camundongos.

Para o experimento, foi utilizado um modelo de estudo que obtém animais com câncer após a exposição a um carcinógeno químico que imita o uso do tabaco. Os animais foram divididos em dois grupos, um que recebeu o inibidor de SK2 e outro, não.

Na comparação final, verificaram que os camundongos que receberam o inibidor da proteína apresentavam menor número de lesões com características malignas que o grupo controle, exposto ao carcinógeno sem o inibidor de SK2. “Esse é um dado extremamente importante porque confirma todos os resultados que nós obtivemos in vitro e também os resultados que nós tivemos com os pacientes, em que a gente identificou alteração da esfingosina quinase 2 e dos esfingolipídeos ”, afirma a professora Andréia.

As pesquisas foram desenvolvidas pelo grupo de pesquisa, com destaque para a doutoranda Lais Brigliadori Fugio e pelo pós-doutorando Gabriel da Silva, que trabalharam sob orientação da professora Andréia. O estudo integrou o projeto temático SET e Esfingolipídeos em Câncer de Cabeça e Pescoço: Sinalização, Alvos e Terapia Antitumoral, com auxílio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Mais informações: e-mail: [email protected], com a professora Andréia Machado Leopoldino

*Estagiária com orientação de Rita Stella

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