Neurotransmissor com função dupla protege contra a obesidade

Texto: Gilberto Stam / Revista Pesquisa Fapesp

Descoberto há 40 anos, o neuropeptídeo Y (NPY) é um dos neurotransmissores mais abundantes no organismo. Há tempos se sabe que ele age no cérebro despertando o apetite e induzindo o ganho de peso. Agora, um grupo internacional do qual participaram pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) verificou que, no restante do organismo, ele desempenha uma função diferente. Secretado pelos nervos periféricos, que ligam o cérebro e a medula espinhal aos demais órgãos e tecidos, o NPY promove a formação do tecido adiposo marrom. Conhecido como “gordura boa”, esse tecido consome muita energia (em vez de só armazenar) e gera calor, protegendo, assim, contra a obesidade.

“Quando alimentados com a mesma dieta, equilibrada, camundongos modificados geneticamente para não produzir NPY nos nervos periféricos ficaram com o dobro do peso dos animais do grupo de controle, que secretavam normalmente o neurotransmissor”, relata o imunologista Licio Velloso, da Unicamp, coordenador do Centro de Pesquisa em Obesidade e Comorbidades (OCRC), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP, e um dos autores do artigo que descreveu o achado, publicado em agosto na revista Nature.

Trabalhando com pesquisadores do Reino Unido, do Japão, da China e dos Estados Unidos, a equipe de Campinas ajudou a identificar e a caracterizar o novo papel do NPY em experimentos com células e animais de laboratório. O primeiro passo foi mapear quais neurônios do sistema nervoso simpático liberavam o neurotransmissor. Essa parte do sistema nervoso é acionada em situações de estresse ou perigo e prepara o corpo para lutar ou fugir. Alguns desses neurônios também inervam o tecido adiposo branco, especializado em armazenar energia na forma de gordura, e o marrom, que consome a gordura e a transforma em calor.

Na Universidade de Oxford, no Reino Unido, o grupo da neurocientista portuguesa Ana Domingos usou anticorpos que aderiam ao NPY para marcá-lo e rastrear a sua liberação no tecido adiposo. Os pesquisadores verificaram que cerca de 40% dos neurônios do sistema simpático que chegam ao tecido adiposo produzem o neurotransmissor. Notaram ainda que esses neurônios se conectavam às células murais, que envolvem as minúsculas artérias (arteríolas) que levam sangue com oxigênio e nutrientes ao tecido adiposo. Testes feitos em laboratório mostraram que o NPY induz a proliferação das células murais e a transformação delas em adipócitos termogênicos, que consomem energia e liberam calor quando o corpo é submetido ao frio ou à atividade física – essas células são o principal componente do tecido adiposo marrom.

“Nosso trabalho confirmou que o NPY secretado pelos nervos periféricos estimula a formação do tecido adiposo marrom”, explicou Domingos, coordenadora do trabalho, a Pesquisa FAPESP. Essa forma de gordura é rica em mitocôndrias, estruturas celulares especializadas em produzir energia, mas em um tipo de mitocôndria que também gera calor. A gordura marrom existe em grande quantidade no corpo humano no início da vida e quase desaparece nos adultos, sendo substituída pela gordura bege, com menos mitocôndrias. “Estima-se que esses tecidos gastem de 200 a 300 quilocalorias por dia, o equivalente a cerca de 10% do total que uma pessoa normalmente ingere”, contou o fisiologista português Jorge Ruas, da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, que não participou do estudo, a Pesquisa FAPESP.

Na Unicamp, a equipe de Velloso testou os efeitos da ausência do NPY no sistema nervoso simpático. Camundongos geneticamente modificados para não produzir esse neurotransmissor apenas nos nervos periféricos tinham a temperatura corporal mais baixa e gastavam cerca de 10% menos energia do que os animais do grupo de controle, que secretavam o neuropeptídeo em todo o organismo. Sob dieta normal, os roedores do primeiro grupo se tornavam obesos depois de adultos, mesmo consumindo a mesma quantidade de alimento que os do segundo. “Eles gastavam menos energia e armazenavam parte dela na forma de gordura”, conta Velloso. Quando alimentados com uma dieta hipercalórica e rica em gorduras, os animais que não produziam o neuropeptídeo engordavam mais e mais rapidamente.

Os autores do estudo observaram também que dietas ricas em gorduras danificavam os neurônios produtores de NPY no sistema nervoso simpático e levavam à diminuição das células murais em torno das arteríolas. Como consequência, os vasos sanguíneos se tornavam mais permeáveis e permitiam o extravasamento de líquido e a passagem de células de defesa que causam inflamação para o tecido adiposo, algo característico da obesidade.

Para o neurocientista brasileiro Ivan de Araújo, diretor do Instituto Max Planck de Biologia Cibernética, na Alemanha, que não participou do estudo, o que mais surpreendeu foi o NPY estimular a diferenciação das células murais em adipócitos termogênicos. “O trabalho mostra pela primeira vez que esse neurotransmissor desempenha um papel biológico importante no sistema nervoso simpático, e abre a possibilidade de se criarem novas medicações que modulem o gasto energético”, comenta.

“Nossos achados sugerem que seria possível desenvolver compostos que estimulam o metabolismo basal e o gasto de energia, sem afetar o apetite”, afirma Domingos, de Oxford.

Medicações à base de análogos do hormônio GLP-1, como a semaglutida ou a tirzepatida, que ganharam notoriedade no tratamento do diabetes e da obesidade, agem no cérebro diminuindo o apetite, mas não estimulam o gasto energético. “A perda de gordura com esse tipo de tratamento é limitada, pois o corpo compensa a diminuição da ingestão reduzindo o gasto energético”, ressalta Velloso. Para ele, um medicamento com efeitos semelhantes aos do NPY estimularia a formação de gordura marrom e o gasto de energia, prolongando a perda de peso causada pelos remédios que diminuem o apetite.

“Um dos desafios”, lembra Araújo, do Max Planck, “é descobrir uma maneira de ativar apenas as células murais, já que em outras partes do corpo os receptores de NPY podem ter efeitos diversos”. Ruas, de Michigan, acrescenta que é preciso verificar se o aumento da gordura marrom ajudaria de fato a diminuir o peso. “Pode ser que ocorra aumento na temperatura corporal e na transpiração, e é preciso verificar se esses efeitos serão toleráveis”, pondera.

A reportagem acima foi publicada com o título “Um neurotransmissor com ação dupla” na edição impressa nº 345, de novembro de 2024.

Artigo científico
ZHU, Y. et al. Sympathetic neuropeptide Y protects from obesity by sustaining thermogenic fat. Nature. 28 ago. 2024.

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