Estudantes afirmam que curso de economia da USP deixou de cumprir diretrizes do MEC após mudança na grade curricular


Segundo o Centro Acadêmico, universidade reduziu carga horária obrigatória das aulas de formação histórica. FEA diz que os cursos estão “passando por um processo de atualização curricular em consonância com as diretrizes da Universidade” mas não esclarece problemas com as diretrizes. Conselho estadual nega irregularidades. FEA-USP
Celso Tavares/G1
Alunos da USP afirmam que a grade curricular do curso de economia da Faculdade de Economia e Administração da USP (FEA) tem pontos em desacordo com as Diretrizes Nacionais Curriculares do Ministério da Educação (MEC).
O problema ocorre desde que foram feitas reformulações na grade que reduziram a carga horária obrigatória das aulas de Formação Histórica e retiraram tópicos que devem ser abordados nas aulas de formação geral, como por exemplo, sociologia e filosofia.
As normas do ministério indicam que 10% da carga horária total do curso deve ser preenchida por esse tipo de conteúdo.
O Centro Acadêmico Visconde de Cairu (CAVC) aponta que, no caso da FEA, isso seria equivalente a 300 horas e, na grade atual, as matérias que se enquadram na categoria somam apenas 240 horas ao final do curso. (Confira íntegra abaixo).
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O objetivo desses conteúdos, segundo documento publicado em julho de 2007 pelo MEC, é fornecer aos estudantes “base cultural indispensável à expressão de um posicionamento reflexivo, crítico e comparativo, englobando a história do pensamento econômico, a história econômica geral, a formação econômica do Brasil e a economia brasileira contemporânea”.
Além do déficit na carga horária, os estudantes apontam que as aulas obrigatórias da faculdade ainda ferem outra diretriz, quanto aos conteúdos de formação geral.
Essa categoria – que também deve contemplar 10% do curso – precisa abordar oito tópicos de conhecimento: filosofia e ética (geral e profissional); sociologia; ciência política e os estudos e propedêuticos da administração; do direito; da contabilidade; da matemática e da estatística econômica.
Segundo os alunos, o curso da FEA tem matérias que retratam apenas quatro: estudos e propedêuticos da administração, da matemática, da contabilidade e da estatística econômica.
Questionada, a faculdade não respondeu sobre as denúncias e possíveis irregularidades. Afirmou, apenas, que os cursos passam “por um processo de atualização curricular” que “está em consonância com as diretrizes da Universidade”.
Na nota, a universidade afirma ainda que “o processo também considera análises prévias, bem como aspectos levantados pelos alunos”. (Confira íntegra abaixo).
Procurado pela reportagem, o Conselho Estadual de Educação (CEE), o responsável pela supervisão dos cursos da USP, disse que o curso foi aprovado, e nega problemas nas diretrizes.
“O último ato regulatório do curso apresentou matriz curricular em conformidade com as diretrizes, de modo que teve seu reconhecimento renovado pelo Conselho Estadual de Educação”. (Confira íntegra abaixo).
Sobre a grade do curso, o parecer 301/2022 se limita a informar que:
“A matriz curricular encontra-se encartada nos autos, bem como as ementas, objetivos e bibliografia, tanto para o período Diurno – fls. 91, quanto para o período Noturno – fls 92”;
“O Curso atende à Resolução CNE/CES 02/2007, que prevê carga horária mínima de 3.000 horas, e à Resolução CNE/CES 3/2007 que dispõe sobre procedimentos a serem adotados quanto ao conceito de hora aula”.
Além disso, o documento expõe apenas quantas horas são dedicadas para disciplinas obrigatórias, disciplinas optativas e atividades acadêmicas complementares.
Segundo resposta do MEC enviada ao g1, a última resolução do CEE que consta no Cadastro Nacional de curso superiores referente ao curso de economia da USP é de 2017, cinco anos antes da nova grade entrar em vigor.
Aprovação da mudança da grade curricular contra a vontade da maioria dos alunos
A votação das mudanças foi feita no final de 2020 pelo conselho do departamento de economia. O órgão é formado por 15 professores e um estudante eleito pelos outros alunos.
Na época, o ex-aluno Bruno de Pinho, que se formou no ano passado, era o representante discente e participou, desde o início, das discussões acerca da reforma da grade curricular.
“O processo começou basicamente de duas discussões”, contou Bruno ao g1.
“A matéria de introdução a ciências sociais estava com pouco professor, mas alguns não quiseram contratar porque queriam contratar pra área geral de econômica. A partir daí surgiu o debate para ‘modernizar’ o curso” e aproveitar para tirar essas matérias”.
Bruno relata que o coordenador da época ainda sugeriu uma proposta de mudança mais “sóbria”, mas foi ignorado pela outra parte dos professores. Após sua renúncia ao cargo, outro coordenador que apoiava a reforma assumiu.
Diante da pressão recorrente dos professores do conselho, o Centro Acadêmico relata que realizou uma série ações para informar o que acontecia nas reuniões e organizou uma pesquisa com os estudantes para entender a opinião geral acerca das propostas para o currículo da faculdade.
“Resolvemos fazer um formulário grande, extenso, com as respostas dos alunos que foram perguntados, de ponta a ponta, o que eles achavam da reforma. Tivemos umas 500 repostas, o que equivale a quase 55% dos alunos de economia”, conta Bruno.
O documento – que chegou a ser apresentado para o conselho -, apontava a insatisfação dos alunos não apenas com as mudanças, mas com o momento em que elas foram discutidas.
À pergunta: ” Você considera esse o momento adequado para termos esse debate sobre a reforma da grade curricular?” 272 estudantes, 54,2%, disseram que não.
Quanto à falta de discussão sobre o assunto, 78,5% responderam acreditar que deveria ter mais debates antes da aprovação.
O formulário ainda aborda todas as matérias, uma a uma, e mostra os questionamentos quanto a retirar ou não da grade horária. A maioria das disciplinas de humanidades – que foram as mais cortadas na reforma – recebeu apoio dos estudantes para permanecer no currículo.
“Nós mostramos esses resultados para os professores, que pareciam estar lá [na reunião] de má vontade”, conta Bruno. “No dia seguinte, eles votaram a proposta de reforma e ela foi aprovada com 14 votos a favor, uma abstenção e um voto contra – que era o meu”.
Resposta da coordenação aos alunos
O descontentamento com a nova carga horária foi tanto que o assunto permanece sendo discutido pelos estudantes quase quatro anos depois de sua aprovação e dois anos depois de sua implementação.
E foi em uma dessas conversas que o CAVC descobriu a não conformidade com as diretrizes do MEC.
“Nesse processo de debater essas mudanças na grade, nós fizemos pesquisas para levar argumentos para a direção sobre a falta de humanidades e, ao vermos o documento [do MEC], percebemos que a carga horária não estava sendo cumprida pelo curso”, conta Gabriel Canjani, aluno e presidente do CAVC.
O próximo passo tomado pelo Centro Acadêmico foi questionar a coordenação que explicou a solução encontrada.
A ideia da administração pedagógica da faculdade, segundo os estudantes, é atribuir mais dois créditos-trabalho para a disciplina de “Economia Brasileira” e, assim, somar as 60 horas faltantes.
Na FEA, há uma diferença entre créditos-aula e créditos-trabalho. Lucas Franco, aluno e vice-presidente do CAVC, explica que o crédito-aula é adquirido através das aulas de uma matéria e ele se transforma em 15 horas de carga horária.
Já o crédito-trabalho é parecido com uma atividade extracurricular, mas relacionado à aula.
“Na prática, as matérias que têm crédito-trabalho são mais densas, com mais leituras, é uma outra dinâmica”, explica.
Além das características da matéria não classificar os créditos-trabalho, os alunos relatam que as plataformas oficiais da USP não contabilizam esses pontos.
“Esses créditos não constam no Júpiter, e nunca foram previstos na ementa da disciplina – inclusive, a coordenação do curso aprovou uma nova atualização da ementa ainda esse ano, já oficializada após ratificação no Conselho de Departamento e na CG, e nessa atualização continuavam não existindo créditos-trabalho”, afirma nota publicada pelo Centro Acadêmico.
Oficialmente, os créditos constam apenas no Projeto Pedagógico do Curso, mas não chegam a ser registrados pelos estudantes. A direção do CAVC afirma não saber qual será a solução da coordenação para os alunos ingressantes a partir de 2022 que já cursaram a matéria.
Nesta semana, os professores da área de Histórica Econômica divulgaram uma nota em que criticam a proposta e afirmam “entendemos não haver justificativa didático-pedagógica para a inclusão de créditos-trabalho nem no programa da disciplina de Economia Brasileira (EAE1240), bem como de nenhuma outra disciplina da área de história”. (Confira a íntegra abaixo).
Quanto às matérias ligadas à formação-geral, a coordenação ainda não respondeu os alunos.
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“Engenheiro piorado”
Para além do desacordo com as diretrizes do MEC, os estudantes se mostram preocupados com uma formação carente de matérias de humanas e mais focada em uma única face do mercado de trabalho.
“Como aluno, eu sinto muito essa deficiência de humanidades porque a gente ainda não sabe em qual campo vamos trabalhar, não é todo mundo que quer ir para empresas”, afirma Gabriel.
“Não temos muitos professores de humanas e muito menos disciplinas obrigatórias, como dá pra ver pelo desacordo com o MEC. É vergonhoso que o curso de Economia da maior universidade da América Latina seja tão negligente com disciplinas de história e de pensamento crítico. Economia é uma ciência social mas, na FEA USP, parece que é uma ciência matemática ou financeira”, diz Lenise Ribeiro, aluna do curso.
“Eu me lembro que na época que fizemos as pesquisas, uma colega me falou ‘se a gente pega o curso de economia e ignora o lado social e político dele, a gente vira um engenheiro piorado'”, relata Bruno.
Na postagem de denúncia que o centro acadêmico fez nas redes sociais, os alunos afirmam que consultaram a grade de dez relevantes cursos de Economia do país – FGV, Insper, PUC-Rio, ESALQ-USP, FEARP-USP, PUC-SP, Unicamp, UFMG, UFRJ e UNB e não encontraram os mesmo déficits.
O que diz o CAVC
“Na reunião de ontem da Comissão de Graduação (CG), foi apontado que o curso de Economia da FEA está em desacordo com as Diretrizes Nacionais Curriculares do MEC e que isso precisará ser corrigido.
Pelas diretrizes, cujo cumprimento é obrigatório, todo curso de Economia deve destinar ao menos 10% de sua carga horária total à formação histórica, o que corresponderia a ao menos 300 horas. Para os alunos da nova grade essa formação é dada em 4 matérias (HEG, FES, Economia Brasileira e HPE), que de acordo com o Júpiter possuem 60 horas cada, totalizando apenas 240 horas.
O último Projeto Pedagógico do Curso foi aprovado pelo Conselho Estadual de Educação em 2022, mas nele constam 60 horas a mais de formação histórica do que o efetivamente praticado, por registrar a matéria de Economia Brasileira com 2 créditos-trabalho adicionais. Esses créditos não constam no Júpiter, e nunca foram previstos na ementa da disciplina – inclusive, a coordenação do curso aprovou uma nova atualização da ementa ainda esse ano, já oficializada após ratificação no Conselho de Departamento e na CG, e nessa atualização continuavam não existindo créditos-trabalho.
Analisamos a grade de 10 relevantes cursos de Economia do país (FGV, Insper, PUC-Rio, ESALQ-USP, FEARP-USP, PUC-SP, Unicamp, UFMG, UFRJ e UNB), e todos eles contam com pelo menos 300 horas, especificamente horas-aula, de formação histórica.
A coordenação do curso afirmou, durante a reunião da CG, que defende agora que sejam criados créditos-trabalho para todas as disciplinas de formação histórica, mantendo a carga de 240 horas-aula e registrando outras 240 horas por esse meio. Essa saída, além de manter a FEA em situação ímpar entre todos os principais cursos do país, vai na contramão do entendimento da própria proposta que a coordenação apresentou esse ano, ao aprovar uma ementa de Economia Brasileira sem créditos-trabalho, e do entendimento vigente no curso sobre o tema, já que hoje as únicas matérias em que essa carga é contabilizada são Técnicas de Pesquisa, Monografia e as que contam com monitorias.
Para além da formação histórica, as Diretrizes do MEC também determinam a destinação de 10% da carga horária do curso para disciplinas de formação geral, “que têm por objetivo introduzir o aluno ao conhecimento da ciência econômica e de outras ciências sociais”, e elenca 8 tópicos a serem abrangidos: “filosofia e ética (geral e profissional), sociologia, ciência política e os estudos e propedêuticos da administração, do direito, da contabilidade, da matemática e da estatística econômica”. Desses 8, o curso da FEA aborda na grade obrigatória apenas 3 (está previsto que passem a ser 4, com uma nova disciplina que aborda conceitos de administração), e fica de fora a outra metade: sociologia, direito, ciência política e filosofia/ética.
Analisando o currículo das mesmas 10 faculdades (FGV, Insper, PUC-Rio, ESALQ-USP, FEARP-USP, PUC-SP, Unicamp, UFMG, UFRJ e UNB), todas tem ao menos 2 matérias obrigatórias voltadas a esses 4 tópicos que na FEA ficam de fora.
Segundo a CG, é necessário aprovar em todas as instâncias até agosto um novo Projeto Pedagógico do Curso, para contemplar a curricularização da extensão. Está previsto que o Departamento de Economia defina, no segundo semestre, o programa de 8 novos concursos para a contratação de professores. Dessa forma, há uma flexibilidade maior para fazer alterações na grade do curso e planejar as contratações de forma a viabilizar as mudanças.
A representação discente fará uma consulta ao conjunto dos alunos sobre sua visão em relação à grade, e convidamos os professores das diferentes áreas do departamento, se assim desejarem, a produzir documentos avaliando o ensino atual de suas áreas de especialidade e trazendo propostas – nos disponibilizamos para compartilhar esses documentos com os alunos.
É de interesse de todos na FEA o cumprimento das diretrizes curriculares do MEC e a manutenção da excelência do curso, oferecendo uma grade que não tenha deficiências em relação aos demais cursos do país. Dessa forma, temos certeza de que a Coordenação do Curso de Economia e a Chefia do Departamento trabalharão junto com a representação discente e os demais professores por uma solução conjunta para esse problema, criando as disciplinas necessárias”.
O que diz a FEA USP
“Os cursos de graduação da FEAUSP estão atualmente passando por um processo de atualização curricular. Esta atualização está em consonância com as diretrizes da Universidade, atendendo às necessidades da curricularização da extensão. O processo também considera análises prévias, bem como aspectos levantados pelos alunos. Cabe destacar que o processo ainda está em andamento, e estamos comprometidos em garantir que as mudanças reflitam as melhores práticas e atendam aos requisitos acadêmicos e profissionais vigentes”.
O que diz o CEE
“Em resposta, encaminhamos os documentos relativos às Diretrizes Curriculares do Curso de Ciências Econômicas, que estabelece os referenciais de percentuais para os conteúdos de Formação Geral, de Formação Teórico Quantitativa, de Formação Histórica e Trabalho de Curso (http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/2007/rces004_07.pdf).
No que tange a questão do 10% citados, nos parece tratar-se da carga horária de extensão na matriz do curso de graduação (http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=104251-rces007-18&category_slug=dezembro-2018-pdf&Itemid=30192).
Lembramos que a Universidade tem autonomia para fazer os ajustes, em consonância com as Diretrizes Curriculares mencionadas anteriormente, de toda forma o último ato regulatório do curso apresentou matriz curricular em conformidade com as diretrizes, de modo que teve seu reconhecimento renovado pelo Conselho Estadual de Educação”.
O que diz o MEC
“Inicialmente, cabe esclarecer que a Universidade de São Paulo pertence ao Sistema Estadual de Ensino e, portanto, não está sob a regulação e supervisão do Ministério da Educação. Dessa forma, os atos regulatórios são expedidos pelo Conselho Estadual de Educação de São Paulo.
A verificação da adequação dos cursos às Diretrizes Curriculares Nacionais é feita no momento da avaliação pelo INEP, no âmbito dos processos de renovação dos atos regulatórios. No caso dos cursos do Sistema Estadual de Educação os processos de reconhecimento ou renovação de reconhecimento não são tramitados no MEC. A renovação de reconhecimento mais recente do curso de Economia da USP, constante do Cadastro Nacional de cursos superiores foi expedida pelo Conselho Estadual, conforme Portaria CEE/GP nº 635, de 12/12/2017.
De maneira geral, as Diretrizes Curriculares Nacionais, disponíveis no link http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/2007/rces004_07.pdf , apresentam referenciais para elaboração dos projetos pedagógicos pelas instituições de ensino, permitindo priorização de áreas de conhecimento na construção dos currículos plenos”.
*Sob supervisão de Cíntia Acayaba e Lívia Machado
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